Criando Piolhos

05/04/23
Publicado por Daniele Gomez

Daniele Gomez descreve suas descobertas e percepções durante a sua visita à exposição temporária "Mundos Indígenas" no Espaço do Conhecimento UFMG

Há pouco mais de um ano eu visitei a exposição temporária Mundos Indígenas no Espaço do Conhecimento UFMG,  museu de Ciência e Cultura situado na Praça da Liberdade, zona sul belo-horizontina. Foi onde constatei o quão insuficiente era a minha bagagem sobre os povos originários e as maneiras como vivem no Brasil. Foi a partir dali que eu verdadeiramente me interessei por retirar o véu de invisibilidade, que continua ofuscando as vidas indígenas todos os dias. 

Reprodução site do espaço do conhecimento

Exposição temporária Mundos Indígenas. Reprodução/Espaço do Conhecimento UFMG.

Inaugurada em novembro de 2019, Mundos Indígenas ainda pode ser virtualmente visitada  no canal do Espaço do Conhecimento UFMG no YouTube. A mostra dá possibilidade aos não indígenas de fazerem uma imersão de conhecimento sobre cinco etnias que estão espalhadas pelo território brasileiro. De acordo com a divulgação do Espaço do Conhecimento UFMG, “o objetivo principal é encantar o visitante com outra maneira de ver e interagir com outros mundos”.

Acho importante mencionar que a equipe responsável pela construção da exposição se preocupou em cativar o público infantil que costuma se entregar com mais facilidade às possibilidades de mundos diferentes dos seus. Na exposição é possível interagir com a cultura das etnias Yanomami, Ye’kwana, Xakriabá, Maxakali e Pataxoop – os modos de vida desses povos são apresentados através de conceitos escolhidos por uma Curadoria Indígena que se juntou à equipe do museu para transmitir ensinamentos sobre coexistência de humanos e outros seres, como plantas, animais e espíritos. 

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Mogmoka Ukuptuxupe, de Tavinho Maxakali (2017). Reprodução/BDMG Cultural.

Você sabia que curadores são as pessoas responsáveis por propor todas as ideias que estão em uma mostra? Pois quem decidiu como os mundos indígenas seriam apresentados foram lideranças dos cinco povos mencionados. Isso só foi possível porque os convidados mantêm uma relação consolidada com a UFMG há 25 anos na qual foi cultivado o interesse de fazer avançar as relações entre povos originários e, assim ampliar isso para um público externo à Universidade. Portanto, ideias colhidas na fonte foram usadas para abrir as portas de entrada para a diversidade cultural de seus mundos. 

Davi Kopenawa e Joseca Yanomami apresentam o “në ropë” para compartilhar saberes sobre as riquezas da floresta. Júlio David Magalhães e Viviane Cajusuanaima Rocha, curadores Ye’kwana, nos convidam a conhecer o conceito de “weichö” com o objetivo de apresentar o modo como o povo se relaciona com a Terra e pedir respeito. 

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Poo Pooma A Marayuwi,  A sogra pássaro tocava-patinho, de Joseca Yanomami (2019) Reprodução/BDMG Cultural.

Célia Xakriabá, Edvaldo Xakriabá e o Pajé Vicente Xakriabá exploram a noção de “corpo-território”, que guarda saberes relacionados à espiritualidade, à saúde, à memória e às sabedorias deste povo – o Pajé Vicente, por exemplo, fala sobre os conhecimentos dos raizeiros, benzedores e parteiras Xakriabás. 

Sueli Maxakali e Isael Maxakali apresentam o “yãy hã  mĩy” para falar sobre a origem de diferentes espécies animais e dos costumes diferentes da etnia Maxakali, que se intitula o povo do canto. É por meio do canto que se preserva o que existe e também o que já se extinguiu. Liça Pataxoop e Kanatyo Pataxoop, cineastas indígenas premiados, trazem a ideia do “grande tempo das águas”. No nicho dedicado ao povo Pataxoop, é possível aprender sobre a percepção da natureza e como é a vida nas aldeias a partir dos “tehêys”, que são desenhos-narrativas que capturam cenas da vida na aldeia Muã Mimatxi. 

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Tehêys, de Dona Liça Pataxoop. Reprodução/BDMG Cultural

Além dos(as) cuidadores(as) indígenas, a equipe contou com a colaboração de antropólogas, educadoras, artistas indígenas e do Núcleo de Expografia do Espaço do Conhecimento UFMG. De acordo com Renata Marquez, coordenadora do Núcleo de Expografia do Espaço, o processo de trabalho foi coletivo, mostrando que  Mundos Indígenas foi desenvolvida por um conjunto diverso de participantes. O mais interessante nisso tudo é que esses profissionais proporcionaram aos visitantes poderem assimilar as diferentes culturas através de uma experiência corporal sensorial. Em entrevista ao Podcast Pelos Mundos Indígenas, ela revelou:

[...] é um projeto expositivo que, do lado do ineditismo de ser uma exposição com curadoria dos indígenas que vão dizer e mostrar como querem os seus mundos, a gente também convidou-os a participar dessa montagem coletiva desse espaço da exposição. Então as coisas vão chegando e a gente vai montando no espaço junto com eles, junto com quem estiver aqui na ocasião das chegadas das peças. Então são cestarias, são redes, são desenhos também, são filmes, são fotografias, são cerâmicas, uma série de elementos que são do cotidiano desses outros mundos que estão distantes de nós e que a gente vai tentar se aproximar deles. [...] Uma característica marcante nessa manifestação de vida indígena, em geral, é o canto. Então a gente, ao invés de fazer um espaço expográfico compartimentado – que a gente cada hora entra numa salinha e está em contato com um mundo diferente – a gente resolveu dar um protagonismo e uma permeabilidade para o canto de cada povo em relação aos outros. Então a gente vai ter o canto sempre na exposição como um espaço sonoro, assim, muito importante de imersão e experiência, mas ele vai ser o canto que  a cada hora ele vem de um espaço. Então a gente nunca vai ter simultaneidade de cantos concorrendo entre si, mas a gente vai chegar na exposição e a gente vai escutar um canto vindo da direita (que provavelmente vai ser Pataxó ou Maxakali) ou a gente vai chegar na exposição e vai vir um canto da esquerda (que vai ser Ye'kwana ou Yanomami). E esses cantos eles vão ficar passeando pelos espaços, e isso pode inclusive guiar a visita. Não existe aí um percurso melhor do que o outro, mas se você quiser chegar e ir para um espaço onde está tocando a música, essa música vai te guiar para visitar os outros."

Liça Pataxoop

Liça Pataxoop

Aspectos da cultura dessas etnias foram representados por elementos produzidos nas respectivas aldeias e se constituem enquanto materialidades não tão familiares aos não-indígenas. Quer saber por quê? É que, na medida do possível, a expografia tentou usar o mínimo da materialidade extrativista, industrializada e descartável na qual estamos totalmente imersos e, assim, conseguiu mobilizar a participação de pessoas indígenas na produção matérica da mostra. Faz sentido demais, né? Já que os mundos indígenas se baseiam em premissas diferentes das que os não-indígenas adotamos para englobar o que existe no universo.

Caminhando de um nicho ao outro no segundo andar do Espaço, me surpreendia com sons, objetos, texturas, cores, fotografias, vídeos, artefatos e ilustrações que representam essas outras formas de se relacionar com o planeta.  Vários elementos envolveram meus sentidos, por vezes me deixando perplexa e outras vezes admirada. Confesso que no alto dos meus 27 anos, me sentia fascinada ao tocar as cestarias e missangas do povo Ye’kwana, deitar na rede da etnia Yanomami e vestir máscaras de temática animal dos Maxakali. Ai Gabi, só quem viveu sabe.  É algo mágico.

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Desenho dos alunos das Escolas Apolinário Gimenes, Mötaku Ye’kwana e Waikás, extraído do livro Nhe’kudu, (2017). Reprodução/BDMG Cultural.

 

Finalmente comecei a compreender a profunda relação daqueles povos com o território e a urgência da demarcação de suas terras. Na visão Xakriabá, povo que habita o norte do estado de Minas Gerais, o território é uma relação ancestral como corpo e espírito. Um texto da professora e ativista indígena Célia Xakriabá, que compõe a exposição virtual, nos ensina que: 

"O território é nosso galho, mas também é semente que nos conecta com nossa matriz mais profunda da relação com o sagrado. O território é nossa morada coletiva, mas é também nossa morada interior. O território é útero, o corpo é território e o território também é corpo. A nossa relação com o sagrado se faz também nas nossas pinturas corporais – não exatamente na metade, mas porque o território não é a metade do nosso corpo. O território é a totalidade. É o ser bicho, o ser semente, é o ser gente, e não deixar ser somente.  O território para nós é como se pensar toda totalidade do conjunto do pertencimento daquilo que nos pertence. O território é sagrado, por isso que nós dizemos que quem tem território tem lugar para onde voltar. Quem tem território tem mãe, tem casa e tem cura."

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Corpo-território, de  Edgar Kanaykõ Xakriabá (2019). Reprodução/BDMG Cultural.

O mundo escondido atrás do véu…

De acordo com o manual Caminhos da memória: para fazer uma exposição, do IPHAN, ações educativas envolvem o desenvolvimento de um projeto que se proponha a dialogar com os públicos com o objetivo de “estimulá-los para que percebam, compreendam e interpretem as obras, os objetos, as provocações e inspirações presentes na exposição, para construção de possíveis significados” (IPHAN, 2017, p. 33). Para mim, essa citação representa o que a exposição Mundos Indígenas fez por mim. Saí da exposição inquieta... e até hoje me sinto desse jeito. Parece que criei piolhos ao me abrir para aqueles mundos antes bloqueados pelo véu da invisibilidade.

Depois de tudo que eu vi, toquei e senti ali, um pensamento brotou na minha mente... “Não conheço o Brasil", pensei. 😮 Para tentar diminuir essa lacuna sociocultural, comecei a procurar representantes das literaturas indígenas em Minas Gerais e em outros estados do Brasil. Pedi indicações de autoras e autores nos stories e também recorri ao Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES), Organização Não-Governamental, de caráter científico, cultural e comunitário, de âmbito estadual. 

Foi nas redes sociais da escritora e doutoranda em Teoria da Literatura no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS,  Julie Dorrico, nascida em Roraima e pertencente à etnia Macuxi, que conheci o Leia Mulheres Indígenas. Trata-se de uma rede de difusão das produções literárias, em língua portuguesa e/ou materna, das mulheres indígenas brasileiras. O intuito deste projeto é ampliar a divulgação das mulheres indígenas e suas publicações autorais no Brasil. Para ler o artigo em que Julie Dorrico apresenta 25 autoras indígenas brasileiras, clique aqui. 

Pensando em criar piolhos na cabeça de outras pessoas, indico a Maracá, livraria online especializada em literatura indígena produzida no Brasil. A Maracá possui um catálogo extenso de obras de escritoras e escritores de diferentes partes do país, que certamente darão a oportunidade de conhecer os modos de viver, de saber e de cuidar dos povos indígenas. A Maracá está no Instagram como @livrariamaraca

Recentemente, eu estava visitando o instagram da Livraria Maracá e descobri que as escritoras Julie Dorrico e Márcia Kambeba integraram o corpo de jurados no 63° Prêmio Jabuti 2021, o principal prêmio literário do nosso país. Não é chique? Fiquei muito contente ao saber que o escritor Daniel Munduruku estava entre os escritores indicados para receber o Prêmio Jabuti com duas obras na categoria infantile uma obra na categoria juvenil. Em 2017, ele foi vencedor do prêmio na categoria juvenil com a obra Vozes Ancestrais (Editora Ftd Educação).

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Daniel Munduruku foi o primeiro autor indígena publicado no Brasil. Nascido em Belém em 1964, ele é professor, escritor e doutor em educação. Desde 1996,  já lançou 55 livros e está celebrando 25 anos de carreira este ano. O título deste artigo faz referência a um poema dele que segue abaixo para inspirar vocês. Com essa joia da literatura, deixo o convite para a gente se engajar juntos na construção de outros mundos possíveis. Até logo!

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Educar é como catar piolho na cabeça da criança.

É preciso que haja esperança, abandono,

perseverança.

A esperança é crença de que se está cumprindo

uma missão; o abandono é a confiança do

educando na palavra; a perseverança é a

perseguição aos mais teimosos dos piolhos,

é não permitir que um único escape, se perca.

Só se educa pelo carinho e catar piolho é o carinho

que o educador faz na cabeça do educando,

estimulando-o, pela palavra e pela magia

do silêncio.

"Ser educador é ser confessor dos próprios sonhos

e só quem é capaz de oferecer um colo para que

o educando repouse a cabeça e se abandone ao

som das palavras mágicas, pode fazer o outro

construir seus próprios sonhos. E pouco importa

se os piolhos são apenas imaginários!"

Daniel Munduruku

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Sobre a autora

Daniele Gomez Créditos Francielle Cota p&b
Danielle Gomez

Escritora, multiartista, produtora cultural e arte-educadora. Bissexual. Feminista anticapitalista. Formada no Bacharelado em Estudos Literários pela FALE/UFMG (2019). Formação complementar em Filosofia na FAFICH/UFMG (2020). Nasceu em Belo Horizonte, mas cresceu na periferia de Santa Luzia. Iniciou sua trajetória como multiartista durante o Ensino Médio, com 16 anos, quando ganhou uma bolsa integral de estudos na escola Palas Atenas. Lá foi incentivada a criar pinturas, poemas, obras audiovisuais, montagem de peças de teatro e música e, sem dúvidas, essa oportunidade transformou os rumos de sua vida a direcionou para o campo cultural e educacional.

Ao longo de doze anos de caminhada, a escrita se tornou sua expressão artística predileta. Poesia e prosa se (con)fundem, muitas vezes, sendo contornadas por outras linguagens como a música e a performance. Enquanto autora-pesquisadora, Daniele investiga a produção de linguagem ética, política e poética.